quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Têm gosto de vodka a angústia e a tristeza
A melancolia e a crise de identidade.
Às vezes até a felicidade,
e eu começo a achar que estou indo longe demais.

sábado, 20 de novembro de 2010

O pseudo-conto de Terêncio

E agora, algo completamente diferente, mas com a mesma pretensão de sempre. Divirtam-se!

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Sentado em seu assento sem estofado, a música alta do rádio do motorista normalmente irritava Terêncio profundamente, mas os vários copos de cerveja de horas antes começavam a vencê-lo no cansaço, e o balanço do ônibus em movimento lhe dava sono. Aquela aura do homem rude de sempre pouco a pouco sumia conforme passavam os semáforos.


Terêncio Oliveira era um sujeito sisudo. Tinha um bigode denso, a pele enrugada pelos 50 anos de idade e os braços fortes de quem trabalhara por muitos anos com as mãos. Sua camiseta, com uma estampa de muito mau gosto do patrocinador, e o sapato com manchas de poeira davam a entender para quem quisesse que definitivamente não era apegado a sutilezas. Achava tudo supérfluo e desnecessário; só o trabalho, que agora não era mais seu, e eventualmente mulheres, lhe interessavam.


Mulheres, é claro, também costumavam irritá-lo a esmo, e isso não era algo com que conseguia lidar facilmente. Não que obedecesse a nenhum estereótipo, mas assumia o animal que tinha dentro de si de vez em quando, e dava surras memoráveis em vagabundos na rua para conseguir vencer a frustração. Mal conseguia sustentar sua casa, que dirá comprar a sua auto-estima.


Chegou até a bater na mulher em uma ocasião, mas também era uma vagabunda que não tinha nada a perder e sumiu em um dia qualquer. Quando acabou o dia de trabalho, voltou pra casa e procurou-a pela casa, irritado que ela não tinha deixado o prato de comida pronto e, afinal de contas, onde estava a merda da cerveja na geladeira?


Gostava de maldizer o vento quando lembrava disso, e resmungava, quase rosnando, que eram todos uns filhos da puta. Dava um valor interessante à vida - seu pessimismo único era impressionantemente peculiar para aqueles que, vez ou outra, sentavam-se ao seu lado no bar e o ouviam contar e insultar aquelas velhas histórias repetidas do seu limitado repertório. Como ainda não tinha se matado era uma dúvida que tomava a todos os assíduos das mesas de sinuca do Estrela Cadente, seu boteco favorito.


Sozinho, acabou noivando com uma ordinária que conhecera por aí; a inexatidão da sua memória era pertinente, já que ele não se importava muito com ela nem com ninguém. Não havia um porquê de nostalgia. E de qualquer forma, tudo aconteceu meio que de repente – quando percebeu, já a tinha em casa, cuidando de lavar a roupa e limpar a casa na sua ausência. Ultimamente, ainda que não estivesse em casa por muito tempo, Regina – sua companheira – estava desolada com a indiferença e, de uns tempos pra cá, andava convenientemente calada.


Pois o ônibus parava em mais um ponto, novos passageiros o distraíam suficientemente para que não caísse de vez no sono. Sua cabeça tombava e o piscar de seus olhos ficava por vezes mais pausado, mas gostava de perceber como eram apertadas as calças de certas mulheres. Uma moça negra estava tão ousada que Terêncio quase esboçou um sorriso.


Sua expressão, no entanto, mantinha-se assustadora e agressiva. Não que ele expressasse isso tão obviamente, mas seus olhos estrábicos e vermelhos, unidos a seu ar cada vez mais distante e alienado inspiravam um certo perigo ao passageiro que sentara, minutos atrás, em sua frente. Todos ali sabiam que nada o impediria de entrar repentinamente em um surto colérico de ódio e bater em quem aparecesse por ali, se assim fosse a sua vontade.


De certa forma, quando não era distraído por uma passageira, por algo na rua que o lembrava da sua tempestuosa vida ou tomado por um sono fortíssimo, era nisso mesmo que ele pensava. Sabia que aproximava-se do Estrela – aquele mesmo bar – e isso era estranhamente animador.


Sabia que nada disso teria um fim muito bonito. Mas sentia as palpitações e seu coração batia forte como dois tambores contínuos, agitados pelo ritmo de sua ira, e cada vez mais rápidos. As veias do braço estavam particularmente saltadas, e sua respiração estava pesada e acelerada.


Enquanto isso, a um par de quilômetros de onde estava o ônibus, Ismael ria e abraçava uma prostituta comicamente feia.


- Vê mais uma rodada aí – disse ao homem que ficava no bar -, porque desse jeito não dá. Tive que mandar um colono qualquer embora hoje; o cara quase matou o outro na porrada no meio da obra e achei até que ia sobrar pra mim. Se eu não conseguir sossego agora, digo pra ele que foi tu, Valdecir, e aí eu quero ver a tua cara quando ele aparecer por aqui.


O grupo de homens que jogava sinuca com ele achou muita graça, e parecia que aquela noite de quinta realmente ia servir pra acalmar os ânimos por ora. Um grupo de mulheres que vinha flertando com todos trocou a música que estava tocando, e algum cantor passou a entoar, ao som de uma sanfona tocando música sertaneja, sobre sua vida de bailões e cachaça. Aparentemente essa foi uma boa escolha, já que alguns até se entusiasmaram e passaram a dançar.


Ismael Santana, até uma semana antes, era o chefe de Terêncio. Este, por se encontrar em uma fase perturbadoramente instável da sua vida, estava tendo ataques de violência constantes. Depois de espancar um outro pedreiro até provocar concussões e fraturas em vários lugares, não tinha mais como conviver normalmente com qualquer insinuação feita a sua pessoa. Bastou uma piadinha infeliz sobre a fidelidade de sua ex-mulher que ele encarnou um chimpanzé enfurecido e atacou sem piedade o piadista.


Isso não era possível, volta e meia concluía-se de novo, e os outros concordavam. “É, realmente, como pode um negócio desses”, até disse um deles. Era até engraçado como as respostas eram lacônicas ou não adicionavam nada à conversa, e parecia inclusive que Ismael conversava sozinho. E isso até que era normal, salvo em discussões apaixonadas sobre os times favoritos de cada um.


Terêncio estava perigosamente próximo. Sabia que seu antigo chefe freqüentava aquele lugar também, e tinha que lhe dizer umas verdades – ele e o canivete enorme que carregava consigo. Estava em um crescendo de sensações, e enrubescia conforme sentia tudo aquilo subindo à cabeça – seus olhos estavam mais vermelhos ainda, e, de certa forma, seu bigode até diminuíra diante do tamanho que ele tomara.


Estava tão absorto em seu transe ébrio de violência psicótica que quase perdeu o ponto. Percebeu o cheiro de fritura e lembrou que o Estrela ficava por ali. Levantou-se, então, bruscamente de seu assento e avançou para fora do ônibus, praticamente carregando os passageiros que estavam de pé junto.


Aquela figura perturbadora irrompeu pela porta do bar, e em uma rápida incursão, foi até o lugar onde estava Ismael e todos os outros. Socou o homem mais próximo, quebrou um copo de vidro na cabeça de outro e, conforme as pessoas tentavam devolver seus golpes, via-se cada vez mais pessoas derrubadas e cadeiras quebradas.


Alguns de fato até acertavam-no, e mantiveram-se brigando por um bom tempo, mas aquele ‘colono’ não se deixava abater. Passou a procurar pelo seu ex-chefe, que furtivamente pegara uma garrafa já aberta e vinha por trás para acertar-lhe na cabeça. Em um movimento muito mal calculado, errou o golpe e deixou-se perceber – Terêncio não estava disposto a morrer com uma garrafada na cabeça e sucessivos cortes com o vidro quebrado, e o revide foi iminente.


Rapidamente sacou seu canivete do bolso, abriu-o e passou a apunhalar e esfaquear, atacando de tal forma Ismael que este passou a ficar desfigurado. Aquela cena dantesca era o ápice, o clímax daquela cacofonia de gritos, socos, facadas e grunhidos irritados, e vencia com facilidade qualquer sonho de roteirista de filme B de terror.


Ismael já não era mais Ismael e Terêncio já não era mais Terêncio. Um estava completamente irreconhecível, e o outro, possuído pelos seus demônios e pela aparência de um selvagem, podia ser qualquer coisa menos aquele cara introspectivo de ascendência alemã de outrora.


De um jeito ou de outro, era hora de sair dali, ainda que não houvesse mais uma alma viva presente. Fora dois ou três jogados por ali, um caído de bêbado e os outros caídos da surra, todos os outros foram sensatos o suficiente para sair correndo em desespero.


O ‘alemão’, no entanto, não foi embora; ficou ali, e aproveitou as garrafas dando sopa, esbaldando-se em um open bar de cachaça barata. Uma hora depois, atordoado, saiu correndo do bar achando que ouvira a polícia, ainda que soubesse que nem a polícia nem ninguém se importavam com aquela espelunca ou com seus freqüentadores.


E não era, realmente, nenhuma sirene, era só um alarme de carro. A rua estava mal iluminada, e o motorista de ônibus, de novo distraído pelo seu rádio, fazia mais uma volta por ali. Não percebeu o maluco embriagado no meio da rua e, em questão de segundos, já não havia mais ninguém para contar a história.


Os passageiros de ônibus sentiram o solavanco e pensaram, emocionados por esta possibilidade, que um cachorro – coitado! – acabara de morrer, impiedosamente, atropelado. Alguns tentaram olhar para trás, mas só viram um bar muito bagunçado e algumas pessoas jogadas lá dentro, sob uma luz fraca e ao som de uma música muito brega.


Sem nenhum moralismo – ainda que fosse mesmo um cachorro, as pessoas voltaram a se distrair com a passagem e com seus pensamentos – “graças a deus amanhã é sexta e eu não tenho que pegar esse ônibus imundo de novo por mais dois dias”.


A vida continuou, e tirando a nota de obituário de Ismael, o acontecimento passou sem que nenhum jornal dissesse alguma coisa. Tudo estava normal, menos para o sujeito que teve que limpar a rua no dia seguinte, que percebeu que ia ter alguma história para contar no Estrela Cadente naquela noite.