quinta-feira, 14 de junho de 2012

Pasteur pipettes


O mundo é um conta-gotas colossal de histórias que morrerão junto com seus protagonistas: há um parágrafo em cada esquina, sobre cada lençol manchado, por trás de todos os suéteres rasgados e inclusive à frente das mesas de madeira de demolição. Nossas reclamações aborrecidas revelam aparentes confissão de almas vazias, mas há na verdade menos almas vazias que tatuagens no corpo do conservador recluso — e por isso somos todos palhaços em um romance russo que não vai ser lido, porque o hábito de ler perdeu-se com o tempo. Tampouco há tempo para perder com traduções, eufemismos e parêntesis, e infelizmente não haverá ninguém para deixar notas detalhadas sobre os carecas enfurecidos que estouram garrafas de Heineken nas cabeças uns dos outros em bares sujos por aí, ainda que tenham passado suas vidas lendo extensos tratados de sociologia. Ansiamos pelas autobiografias que surgirão para contar fatos notórios e sabidos, mas teremos ao final uma decepção de 200 páginas e 50 capítulos, cuja edição mais caprichada nunca chegará a prateleira central da livraria catarinense e talvez venderá menos que aquela compilação de contos de um blumenauense (à venda sobre a mesa de centro no consulado). 

Nossa cabeça é um infinito conta-gotas de histórias que morrerão conosco: enquanto nos entretemos até a morte, acumula-se o número de paginas que você poderia estar escrevendo (e eu, lendo). Devíamos estar registrando em meu teclado ergométrico cada passo daquele meu conhecido que se parece com um lêmure  ao invés de perder tempo fazendo mais café. Devíamos estar construindo monumentais obras rimadas para contemplar quando nossa autoestima estiver baixa, e devíamos estar aprendendo latim — ah, a vida é tão sem propósito quando gastamos fios de cabelo pensando na morte. Vamos lá, é hora de tirar mais fotos para entreter nossos netos entediados: quem sabe um dia eles se deparem com álbuns de fotos perdidos em um álbum no canto da casa.

São também conta-gotas as impressões de mundo que ouvi de meus melhores amigos: quero conhecer mais uma vez todas as histórias e repassar em minha mente longos monólogos sobre o sol da meia noite. Vou aprender a falar somente frases de efeito com entonação engraçada. Escreverei um longo diário fictício que se encerrará em uma praça grande e vermelha onde olhares são transcritos em alfabeto cirílico, e contemplarei frequentemente em devaneios a estátua do Almirante Nelson no topo de sua coluna, gritando a vitória rimada em gíria cockney. Vou escrever sobre Montreal sem nunca ter ido para o Canadá. Vou vestir um terno e atear fogo em mim. E ao final do dia, ao olhar-me no espelho, vou cruzar os dedos, esperando que dure para sempre o ar que enche meus pulmões.

Todas as frases são — veja só — conta-gotas pingando seus pensamentos de pouco em pouco. Assim, longos diálogos fazem menos sentido que esses frases,  e por isso o trabalho é a melhor distração do que um blog. Mas nada disso é suficiente. Então, ainda que eu queira passar meus dias escrevendo metáforas ruins e longas frases que não fazem sentido, prefiro reduzir-me ao pragmático.


Em outras palavras, é minha deixa para parar de escrever besteira, e amanhã mesmo irei ao correio enviar-te um conta-gotas junto de um bilhete (eis aí, enfim, algo que valha a pena ser escrito). E antes que me esqueça: antes de enviar o conta-gotas de volta, prometa enchê-lo até a metade com seu perfume, para espalhar pela casa em tua ausência. 

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Where droppers are poetry,
where texts make sense:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2012/06/acucar-ou-adocante.html




Um comentário:

  1. "Nossa cabeça é um infinito conta-gotas de histórias que morrerão conosco".. Poderia reler esse texto por dias sem cansar a vista, digo com certeza.

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