domingo, 26 de agosto de 2012

quarta-feira à tarde


Uma fanfarra está marchando e batendo furiosamente seus tambores, caixas e bumbos por cada veia e artéria pulsando meu sangue. Sou a sublime epítome de toda a existência humana porque quero morrer agora. Preciso morrer agora: nada do que pode vir depois pode ser melhor do que o incansável verve que grita em minha cabeça, torcendo os tendões de meus braços e convocando minha íris a buscar o reflexo azul do céu catarinense.

Vendo a minha alma para nunca mais perder a epifania deste minuto, o cheiro de café, o perfume doce, o sorriso sobre a barba batida na mesa ao lado, as cicatrizes, as teclas de marfim gasto no piano de cauda, as batidas do relógio em movimento — cada segundo é sagrado — e as flores amarelas do Ipê, já no chão: quero dissolver-me na hipérbole inquieta de viver. 

Frisar seu cabelo com a mão, os pontos de exclamação, os corais eruditos, a inexplicável risada despida, os corpos nus e cada arranhão, minha pálpebra inferior palpitando, a êxtase insone, todos os cenários já habitados em sonhos, as cores distorcidas, o universo e o seu quintal: estou tremendo de expectativa pelo futuro. 

Sou a definição ambulante da prosa inspirada pela vontade insaciada. Minhas pernas não se assentam, as solas dos meus sapatos estão furadas, as minhas pulseiras coloridas estão ficando gastas, e as marcas na parede são a alma da casa abandonada que há na rua que leva até o parque. O cheiro da grama cortada, os pássaros migrando e os patos na lagoa artifical, o vento quente da meia estação, a minha inspiração. O pedido eminente para que não, não vá embora; a brisa abafada que vem lá de fora, a memória da tempestade e do trovão, a água gelada, as metáforas intangíveis para sensações concretas, a expectiva mesclada de medo e delírio, a taquicardia, a verdade, os ofegantes corações, a saudade, o sentido figurado dos tufões, a idade, o canto entoado por milhões. A liberdade, a crença de igualdade, esperança e as transições; os acordes maiores, a vida resumida em paixões. 


--
Hoy llamé a casa abandonada, 
tiempo que pasa crea inestabilidad:

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Paulatinamente


Lembro-me bem das aulas da Prof.ª Karen¹, especialmente quando chegamos ao ponto em que ela nos dividiu para ler “Vigiar e Punir”. Nossa tarefa era entender o “panóptico”, modelo de sistema carcerário de penitenciárias circulares, com uma alta torre de observação construída no centro que cria aos encarcerados isolados a constante sensação de estarem sendo observados. Frisa-se que ser observado constantemente implicaria necessariamente em uma punição imediata em caso de mau comportamento (algo substancialmente eficaz em termos de controle de grupos).

Por certo há aí toda uma discussão sobre sistemas penais ou carcerários, mas foi outra coisa que me deixou pensando por mais tempo. Pareceu-me, quando primeiro começamos a debater o porquê dessas idéias, que esse modelo é baseado exatamente em algo muito mais amplo. Afinal, posso supor sem maiores problemas que vigilância interminável é exatamente todo o ponto de qualquer mecanismo de convivência social, porque passar pelo crivo de todos é exatamente aquilo que define até aonde vai nossa moral e sua aplicação prática. Anda-se nu dentro de casa só com as persianas abaixadas. Em qualquer contexto, o debate em liberdades individuais começa exatamente no momento em que elas deixam de ser individuais e são debatidas — no gabinete da enésima vara, ou no meu sofá no sábado à noite.

Nada novo nisso tudo. Mas aí continuam alguns problemas, já que o papel de frear ou liberar certos impulsos cabe ao abstrato poder estatal. E uma palavra que certamente vem à cabeça quando alguém fala em, digamos, governos autoritários e ditaduras é a questão da censura. Há sempre só um lado da moeda, estampado com a cara da Rainha de Copas, porque não se aceita algo contra a vontade já sólida e decidida do status quo. Quando não se corta a cabeça alheia ou quebra-se as pernas, reduzem as opiniões contrárias às dezenas (e está aí a Bill 78 em Montreal que, tão atual, não me deixa mentir).

E aí chegamos no ponto que eu pretendia: o poder de calar ou deixar falar, mesmo em nível de decisões estatais, só pode derivar de uma grande vaidade individual de não se aceitar aquilo que pouco a pouco — paulatinamente — foge das expectativas. Sempre há quem preferirá suprimir, omitir e excluir. Os outros poderão sempre fugir em exílio, rumo à paulicéia.

O que resta disso é que os grupos são proporcionais, assim como as suas respectivas bobagens e censuras. As tolas concepções de falta de caráter, os tristes debates acerca dos erros dos outros — quem pensamos que somos?! —, e as cabeças cortadas (em metáfora ou não); todas as falhas de viver em grupo ecoam. Nossos momentos de ébria felicidade comemoradas na páscoa, nos feriados nacionais e durante as férias são pesados com receio.

E, ainda que seja questionável e exagerado o pragmatismo individualista dos ermitões, decepciono-me com decisões democráticas em grupo. Não há voto vencido: cortem-na a cabeça. Condenem-na ao ostracismo. Façam com que fique quieta. Simplesmente a evitem, e que viva para sempre a vergonha de atitudes daquela que — pasmem! — fez algo do qual discordaram.

Mas sem pânico: com alguma sorte, a verdadeira necessidade de se fazer ouvir frente a terríveis atos institucionais nunca mais será realidade por aqui. Felizmente, só conheceremos essa censura tola que queima sob nossas pequenas panelinhas.

Enquanto isso, diante dessa pequenice toda, o rude pedido de silêncio de agora será indiferença depois. Se estamos mesmo em um panóptico, a prisão é a torre de observação. Toda canção de liberdade vem do cárcere. 


Por fim, se há alguma lágrima ou decepção, é porque se lamenta a falta de bom-senso da Rainha de Copas, tão desvairada.

--

(1)  — “Se estiverem felizes, fiquem felizes; se estiverem tristes, fiquem tristes! Vivam o momento!”

--