domingo, 25 de novembro de 2012

Esquecer-se: terríveis vultos (pt. 1)


Embora me considere um cara bastante introspectivo e entusiasta de uma boa dose de contemplação das paredes, uma das minhas maiores fontes de entretenimento certamente é encontrar pessoas com uma boa história. Tenho dois colegas bastante próximos que têm sido fontes constantes desse tipo de momento, e frequentemente me vejo diante de compilações verdadeiramente inusitadas de largas e detalhadas descrições de relevantes perspectivas no interior do Rio Grande do Sul e no litoral catarinense.

Por exemplo: um deles passou a ser recentemente o cara que já esteve em um cargo de gerência de uma sucursal na Índia aos 19 anos, comandando, entre outros, um sujeito que achava ideal manter o crachá de identificação pendurada no cinto, bem entre as duas pernas. Outra história memorável, pela qual me deixo convencer sempre, é aquela sobre como quase foi futebolista semiprofissional em alguma cidadezinha australiana. As pessoas são realmente surpreendentes de vez em quando.

O outro passou muito perto de padecer de febre em distantes aeroportos, chegando próximo de desfalecer em uma coleção de cidades e hostels mediterrâneos. Por sinal, parece-me que encontrou amor de verdade — ou assim gosto de entender o que me conta — e agora vive de felizes esperanças e eventuais tristes constatações. Nunca deixa de ser uma excelente conversa, precisamente por isso.

Aliás, no ensejo de alguma dessas narrativas, deixei-me levar por devaneios em uma boa meia hora de expediente outro dia, quando me foi explicado longamente como eram os detalhes nas paredes de mármore do Taj-Mahal. “É o tipo de coisa que não dá pra entender até que estejas lá”, diz ele. “Fiquei de cara. Mesmo.” As gravuras da fachada e a estrutura da construção – naquilo que a internet chama de uma das obras primas do estilo arquitetônico correspondente, como fui ler depois – são praticamente incontáveis, e todo o conjunto desenha a epítome da metáfora à qual voltamos sempre: viajar é partir para surpreender-se. Todas as culturas em algum momento  estarão à espera com algum memorial monumental, atentas ao seu queixo caído.

Nisso ele continuou: há certas rodovias e estradas indianas à beira das quais crianças cadavericamente subnutridas deitam no meio-fio, entre lixo e sujeira. Nada particularmente idiossincrático, mas foi o suficiente para causar uma impressão e tanto em mim. E um pouco longe disso — mas em uma realidade não tão distante — os seus colegas de trabalho indianos gostavam de comer uma refeição apimentada só com a mão direita. Suas vidas são temperadas como suas refeições, e um ocidental desavisado não percebe isso até que queima a língua com o molho ardido. Enfim, suponho que não seja possível de manter uma convicção de pé quando alguém te olhar rindo e pronunciar com sotaque exótico que, veja só, o importante talvez não seja nada disso que você está querendo. Ele não precisa saber onde fica Santa Catarina, mas o indiano preza em sua casta uma realidade paralela a nossa — e é feliz à beça.

“Como assim? É um lance tipo o karma?”, pergunto, já conhecendo em parte o assunto, mas indagando do mesmo jeito. “É, por aí”, diz ele. “Castas e tal.” Ninguém lá é exatamente um poço de conformismo, mas não é difícil de imaginar que as pessoas tenham um espectro de perspectiva completamente diferente: quem morre sabendo que vai ter uma bela pós-vida, morre feliz. “E aí não faz mal que o cara morra na merda”, concluiu ele, pensativo.

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Esses meus dois colegas viajam logo, e amanhã não estarei aí. Despedi-me deles tão logo terminaram as narrativas sobre países longínquos e fusos horários opostos. A um deles, como de praxe, pedi um cartão-postal; ao outro, não disse nada, mas não foi necessário. “Não curto muito escrever”, ele acrescentou espontaneamente e riu.

Ah, é realmente uma pena: no meu pretenso costume de escrever vez ou outra as abstrações sem sentido, referências pouco claras, amores e desamores que acontecem por aqui, imagino que, se meu colega nunca parar para registrar, um dia as suas histórias serão esquecidas sem dó. Bom, por certo ele também não estava sentindo muita piedade das histórias. Até o questionei se não lamentava ter deixado de lado a oportunidade de ser o brasileiro futebolista ganhando uma grana na Austrália ou de viver um sonho bollywoodiano, mas não. “Foi uma fase, e daqui a pouco vou estar em Hamburgo trabalhando num emprego ‘da hora’, vais ver só”.

Minha fobia do esquecimento me engasgou.

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O turbilhão de memórias continua, mas a história passa a ser minha — estive em um casamento há pouco tempo. Melhor dizendo, o casamento do meu irmão, e um dos dias mais felizes que já pude viver. Havia no ar um clima bastante incrível de êxtase e genuína felicidade, impressionantemente não limitado ao casal. Talvez o padre tenha acertado ao dizer que estávamos celebrando o amor.

O lugar era bastante bonito, é importante não esquecer. A igreja de Gaspar é grande, alta, com pilastras majestosas, uma bela fachada, com cores vivas e gritantes, uma escadaria alta, e o altar simples, mas emocionante. Lá eu chorava, como bom padrinho. As pessoas iam entrando, e eu lá soluçando no altar que ocupava só como feliz testemunha. Limpo o suor da testa, ajeito a gravata prata e poderia continuar, mas em termos de esquecimento, há outro foco — lá pelas tantas, minha avó sobe ao altar.

Vamos lá: tenho uma avó que tem uma séria doença degenerativa no cérebro, e isso a faz esquecer-se de tudo e todos depois de certo tempo, permitindo-lhe uma cara amistosa, dócil, confusa e um constante ar de admiração. Estamos sempre a nos perguntar se ela realmente compreende o que se passa. Talvez finja entusiasmo para que paremos de dar atenção ao fato de que ela de fato não pode estar totalmente ciente daquilo que a cerca.

No conjunto da pessoa — com seu tailleur cor-de-rosa, cabelos crespos e simpáticos óculos redondos —, vi uma adorável mulher no limiar do esquecimento.  Alguém que assentia alegre e cordata a cada afirmação entusiasmada do padre eloquente, mas que me dava ao mesmo tempo inexplicavelmente uma impressão triste. Eu provavelmente estava fortemente influenciado por saber qual é sua real condição médica, mas não pude conter um soluço menos contido quando a vi subindo os degraus que levavam até os noivos.

Por alguns segundos no altar, lugar e hora bastante improváveis para tal, vi-me diante de uma série de recordações de quando meus primos, meus irmãos e eu éramos criança e corríamos pelo quintal dela. Nesse tempo, ela costumava fazer pão de queijo para nós, cujo sabor e textura sempre permanecerão irreproduzíveis. Talvez já tivesse tido a sorte de provar algum pão de queijo com cheiro não muito diferente, mas o gosto nunca será tão bem misturado com a memória do cheiro dos limões e do galinheiro abandonado no quintal. Pensando bem, não sei se meu paladar saberia distingui-lo se o estivesse provando novamente.

O pão de queijo, é claro, é apenas um exemplo. Ninguém choraria porque sente tanta falta de uma ou outra iguaria específica. Mas lamentei que minha avó — e sua alma, arrisco-me a dizer  —  estavam apenas em parte presentes. O resto fora já outrora soprado pra longe.

Meu ponto: acho que imaginar uma vida inventada para ela não vai ser o suficiente depois que cair no infinito abismo do cérebro plenamente degenerado. Lamentarei infindavelmente, mas enquanto não houver alguém que se disponha a biografar a sua vida por completo e faça com que choremos de nostalgia (e não só saudade), vou viver atormentado por ter conhecido só uma lembrança viva e já borrada. Sua voz trêmula vai desaparecer, por nunca tê-la gravado, e seu quieto mundinho interno conhecerá a extinção, por não o ter transcrito. Conheço-a, pelo jeito, muito menos que deveria, mas agora teremos cada vez menos de si para contar ao mundo.

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Viver, arrisco dizer, é estar imerso em um fluxo de memórias, servindo a nossas vidas como narrativas paralelas. Aqui, onde somente a introversão vê prazer, os fantasmas surgidos do assombro da transitoriedade são terríveis e assustadores vultos. As narrativas paralelas de outrora são lembretes sérios e impassíveis de que possivelmente as partidas futuras serão a tônica constante de tudo o mais que sobrevier. Se o desapego, como os vultos espreitando nos cantos no aguardo de um passo desatento, ousar estar certo, dar-me-ei por vencido pelas futuras tentativas de fincar raízes nas pretensas veredas oferecidas pela minha fácil e vã vida. A leveza com que o tempo passa é, como bem dito entre Joinville e Blumenau, tanto nossa tragédia quanto nossa esperança. 

nunca me esqueço:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2012/10/retoricas-sobre-esquecimentos.html

Esquecer-se: felizes vultos (pt. 2)


Em uma perspectiva mais deslumbrada, por outro lado, há o puro bliss extasiante de acordar com a cama tomada pelo súbito ar perfumado, pelo corpo quente e o único sorriso que eu consigo aceitar como belo e único. Sobre as longas mechas castanhas que adornam tanto minha incrédula realidade, paira o inconfundível motivo para abandonar qualquer pensamento que faça qualquer referência de longe à pedra de Sísifo. É visível como a assustadora perspectiva de assistir desmoronar o produto de semanas, meses e até anos de trabalho pode parecer apenas distração nesse tipo de momento. 

O karma indiano, as histórias infindáveis que serão sequer incluídas nos anais de qualquer registro, os tristes parentes e fantasmas que levarão consigo as biografias impublicadas, o gosto de pães de queijo inauditos: todos os itens dessa lista efêmera e volátil são os fractais infinitos de explicações incompreensíveis (cujos desdobramentos jamais cessam), resultando em uma única conclusão, demonstrável somente pelo afã do momento descrito agora: quando a luz batia pela janela em uma pequena fresta, na perfeita temperatura de novembro às 10h30, e a expiração brusca e barulhenta do labrador no andar de baixo são o único (e praticamente imperceptível) ruído, abri os olhos e fui recebido com o ‘bom dia’ mais doce que já pude ouvir. Meu corpo por completo ainda estava sedado pelo sono confortável do colchão de casal macio e pelo ar gelado do quarto. Despertei aos poucos, perguntando-me se podia aceitar aquilo sem remorso de todas as conversas tidas durante os dias úteis, nos bares, nos bancos da faculdade, e oferecidas por todas as inadiáveis e terríveis dificuldades alheias.

Ainda assim, confortei-me em meu mais sincero sorriso, e de olhos fechados, com todas as perspectivas de tempo convenientemente afastadas, citando um grande amigo, percebi: tem gente que vive uma vida inteira e não sente isso que a gente está sentindo. 

Não há medo do futuro que consiga persistir incólume. 

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