quarta-feira, 25 de setembro de 2013

a vastidão de todas as almas em três letras banais


Os ingleses e americanos ganham mais uma vez. Os anglófonos desse mundo, ignorantes em termos de ‘saudade’ por uma tecnicidade linguísica – carecem de equivalente para seus idiomas , são donos do awe, e nos superam com facilidade em termos de palavras intraduzíveis. Awe é o pior de nossos medos e também a dádiva mais prodigiosa; a  sensação de ruína e a glória; a satisfação aparentemente eterna que brinca com nossa noção de tempo por seu êxtase constante ou delírio assustador. Três letras bastaram para admiração, espanto, rapto dos sentidos, estupefação e enlevo, como se toda a dualidade inevitável da vida coubesse num substantivo banal.
E nós aqui, afoitos com dicionários analógicos da língua portuguesa, só para ver se aparece algum equivalente.
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Fiquei vendo na TV outro dia uma longa reportagem sobre a Cracolândia em São Paulo e seu equivalente no Rio de Janeiro. O repórter grisalho e sua colega de ascendência japonesa aventuravam-se pelas ruas ocupadas por maltrapilhos agressivos e desesperados, delirando nas suas pedras de crack e deixando a química da droga aliviar o martírio de suas mentes. Um sonho dantesco de indivíduos amaldiçoados pelo terror da condição social e tantos outros que cairam ali por motivos não explicadas pelos jornalistas.
Senhor deus dos desgraçados! Vê só lá pelas tantas o repórter exaurir sua fonte nos focos principais da reportagem para buscar viciados fora da cracolândia. Havia um casal de drogados jogados sob a ponte que fitava o nada e mexia a cabeça de modo meio demente. O homem está com a cara borrada para poupar sua identidade já há tanto tempo perdida, mas a mulher não. Ela é abordada pelo homem grisalho e bem vestido que conduz a entrevista.
Ele se aproxima com cautela. Ela está desconfortável pela sua presença e da câmera, e tenta fingir que sua situação é perfeitamente normal. Ao ser perguntada por que está triste naquele dia, ela desconversa. “Triste, eu? Por quê?”, mas há insistência. Ela rebate as inquisições com comentários sarcásticos, mas começa a lacrimejar. “Porque você chora se está feliz?”, questiona o repórter. “Sinto falta”, e treme débil com suas mãos magras e os poucos dentes na boca, e não consegue completar o que ia dizer. “Sinto falta da minha vida, sabe”, e chora à beça. “Meus filhos, a terra de onde venho—”, mas nisso intervém o seu companheiro, que se opõe violentamente à presença da equipe de reportagem ali. “Vão ficar falando merda aí, sai fora, meo.”
Gaiato, o repórter leva embora a mochila, e continua sua missão ao buscar o cara que foi assaltado pelos dois e teve seus bens subtraídos. Essa parte, no entanto, é extra: o awe terrível de uma habitante exilada da Cracolândia fora destilado com sucesso. “Um drama do Brasil, questão de saúde pública”, diz o estudante dono da mochila. Enquanto isso, os telespectadores afoitos não conseguem aceitar bem o que viram e se contorcem na cadeira de casa. Questão de saúde pública, sim, pode ser —  mas não sabem nem descrever o que os acertou. Falassêmos inglês, estariam poupando palavras e sorveriam desgostosos o awe que se transmitia pela televisão.
Após os comerciais, volta ao último bloco a reportagem. A equipe de jornalistas se divide em dois para reencontrar viciados já entrevistados em edições antigas, de vários anos atrás, do mesmo programa: a moça nipônica, no Rio de Janeiro, e o sujeito grisalho, em São Paulo. Ela vai atrás de uma criança, que entrou nessa porque a família toda já usava o crack, e ele vai buscar uma mulher que havia reconquistado a sobriedade no transcorrer da última reportagem.
Essa parte começa com uma retrospectiva: a mulher, morando em uma favela junto com o pai e o resto da família, descrita como boa gente, cercada de pessoas boas e boas intenções. Em algum momento ela começa a usar a droga, passa a morar na rua, e se perde na vida. Vários takes do pai procurando por ela passam em seguida, intercalados com a visão dele construindo um sobradinho só para ela. Aí ele consegue recuperá-la. A usuária está acabada, mas foi reencontrada e volta assim a dormir em casa. A moça, agora de aparência tão lamentável, vai ao centro de recuperação. Cortam para imagens de meses  depois: em uma igreja,  morrendo afogada no seu próprio mar de fé, ela chora intensamente. O pai também chora, e todos se emocionam. Dão a ele um microfone: “dá vontade de chorar, de rir, eu não sei! Eu nunca estive tão feliz, não consigo nem entender isso aí. Só pode ser coisa de Deus!”
A audiência respira feliz com o pólo oposto daquela sensação de putridão da droga que vinha sendo descrito até então. Finda a retrospectiva, os jornalistas batem à porta do pai da moça: em que pé ficou aquela história? Por onde ela anda? O pai abre a porta já meio desesperançoso e cansado. Ah, pois é. Cansei. Tanto tempo e esforço para salvar minha filha… Voltou pra Cracolândia. (Ele lacrimeja.) Não sei mais o que fazer.
A equipe sai na mesma busca pela moça, e a encontram. O que aconteceu?, eles querem saber. Como é que você acabou voltando para a droga? Não tinha se recuperado? Ela não está afim de dar explicações. Diz que é doente, é viciada, tem um problema — e é isso aí. Recaiu, voltou, ta aí de novo.
Em uma última visita a esse pai que gostaria de ter qualquer motivo para não dar outra entrevista sobre a filha viciada, o repórter explica que a viu na Cracolândia na sexta feira anterior. Ele meio que repete o discurso, como quem diz que não adianta fazer todo esse auê — essa alma aí não vai ser salva.
Último quadro do dia: “falamos com seu pai”, dizem os repórteres para chamar a atenção. “E ele sente a sua falta. Disse que vai deixar um espacinho lá na casa dele para você, e você pode sempre voltar quando quiser…” Ela segura algumas pedras na mão, e os fita longamente. “Ah é?”, pergunta meio desolada. “Sim”, diz o repórter. “Pô, tamo junto”, ela conclui, longe da salvação do ano anterior e longe, na verdade, de qualquer salvação. Ela vai embora, caminhando de volta em direção a mais um grupo grande de pessoas como ela.
Termina o programa. É difícil de dormir com a memória da usuária de crack que chora diante do repórter. Há algum tipo de vastidão nessas pessoas, mas do mesmo tipo de vastidão que tem um abismo profundo. Há um medo intenso da profundidade, e a morte como problema e também como solução. E é o awe de que falo na sua polaridade confusa e pessimista. (“Maybe you should never ever watch the 10 o’clock news”!)
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Mantenho-me ainda impressionado pela versatilidade bizarra da palavra. Logo “awe”, de som tão banal. Saudade soa muito melhor, sem dúvida, mas está presa a um aspecto só de um sentimento tão comum, nesse lado triste da ausência alheia. E o  ”awe” transita de um lado para o outro – ora ‘desolação’, ora ‘fastio da alma’.
Eis a forma com que tornei a dormir depois, aliás. A vastidão percebida pelos nossos sentidos incrédulos deixa cicatrizes profundas na memória não só por conceber a difícil existência, por exemplo, da Cracolândia. Ela — e o ‘awe‘, por tabela —  também está presente nos melhores momentos de beleza sublime, graça e em eventuais provas de paixão, quando não se sabe a diferença entre a dança e a dançarina.
A metáfora é pertinente, por sinal. Sempre lembro disso quando me dou conta que estou dançando em algum lugar. Esse é o outro exemplo, o mais leve: nunca soube me livrar desse temor engraçado que acompanha o momento antes de se soltar junto com a música, ainda que lembre com alegria anormal das vezes em que isso deu certo. É meio idiota também, é verdade. Mas o súbito receio de esquecer como se move ao som de uma canção qualquer é tenaz e persistente.
Explico, e rogo a presença da morena de voz cantada. Morena de voz cantada, perfume de flores, de intenso vicejo e coração (secretamente) selvagem, de rosto bonito e pés dançantes. Aí, aliás, é que está meu ponto: tenho certeza que é sublime a fluidez com que minha morena encarna os compassos,  brincando com o corpo e me tomando em transe – e fazendo que não sabe disso, mas sei que sabe. Céus, como se compete com isso? Como dançar se, no deslumbre meio passional, até esqueço como se faz para andar?
E o awe, devolvendo o mérito para meus camaradas estadounidenses ou britânicos, resumindo todo esse micro-drama e apressando em muito os tropeços desse meu coração aflito, canta sua glória. Meu caro, diz ele, é uma questão de aceitar e desistir, ou render-se à noite que não te dá outra opção, e conviver pacificamente com sua felicidade.
As noites em que sou bem sucedido encerram-se em cenários de pistas de dança progressivamente mais vazias, e a morena me sorri. E o âmago da minha existência, assim com todo o seu exagero inerente, agradece em igual tom, sorridente e satisfeito. Não por dançar ou deixar de dançar per se, mas por ter testemunhado bossas e poemas de Vinicius tomarem vida na minha frente, justificando o Werther do Goethe, e me fazendo recorrer a todo o tipo de referência, mais ou menos bossal, para tentar entender e explicar como estou absolutamente tomado por essa sensação meio insana de paixão. Algo meio difícil de descrever, que não cabe nas minhas pupilas dilatadas ou na súbita vastidão de uma alma cética que, de repente, esquece da Cracolândia ou desses temas tão difíceis. Ali, atordoado, buscando palavras e você — “oi, babe!”, tão simples e sensacional. É óbvio que vou acabar fazendo gracejo.
"No que você está pensando?", você vai me perguntar. Eu teria que entrar nesse assunto dessa forma, assim longamente, mas não sei se você precisa ouvir tudo isso. Fosse eu inglês ou americano (ou mesmo canadense ou quem sabe australiano), resumiria inclinando a cabeça de leve e dizendo, só depois de uns dois segundos: “awe”. 
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Pensando bem, enfim vou concluir que a dualidade extensa e maluca dessa história toda é o seu próprio ponto positivo. Assim como não é necessariamente compatível viver a vida e, ao mesmo tempo, entendê-la, ainda que a dança e dançarina não se diferenciem entre si. A chuva, me disseram, soa como aplausos se você fechar os olhos, aliás. Mas, no fundo, são a mesma coisa.
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Eu nem sempre sei como dizer o que quero dizer, e frequentemente demoro muito para fazê-lo. Mas digo mesmo assim.
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2013/06/far-too-many-postage-stamps-pt1.html